quinta-feira, 11 de julho de 2013

Um harmonia inexistente

Senhores, mais uma vez tomo a liberdade de traduzir um texto de Enrique Lerena de la Serna, sobre a Amazonia... Aproveitem:

Vivi mais de 3 anos viajando entre a cidade de Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) e a aldeia Urubichá dos índios Guarayos, 300 km mais ao norte. Alí é uma das portas de entrada para a Selva Amazônica: O Rio Branco (Aham, então é por isso), também conhecido como "Agua caliente", passa por trás da aldeia, vai a uma queda enorme e forma um lindo lago conhecido como 'A Mãe de Urubichá'.
Em suas bordas podem-se ver como todos os dias as mulheres vão lavar roupa, as crianças brincar e os homens em suas canoas partem rio acima para pescar. O missionário alemão, Padre Walter Neuwirth, passa pela região em sua bicicleta chinesa ou em seu pickup Toyota e dá aulas na escola da paróquia. A paisagem é de uma beleza impressionante; o ambiente bucólico incita a ficar relaxado, deitado em uma rede bebendo cerveja e pensando que se está as portas do Paraíso que nos descreveu Rosseau no século passado. A primeira vista chega-se a pensar que alí se vive uma perfeita harmonia com a natureza.
Isso não existe. A realidade é muito diferente. O traço principal que impressiona terrivelmente é a miséria geral que se pode perceber. Urubichá existe somente porque o padre Walter e seus antecessores nunca deram o braço a torcer. Recebe doações da Alemanha para seguir com suas obras e, ainda que eu não esteja muito de acordo com as coisas que faça e muito menos com a maneira com que faz, é necessário reconhecer que se não fosse por ele e seus predecessores a aldeia já teria desaparecido.
Alí construí um pequeno albergue para explorar o que sei fazer bastante bem: pesca, observação de passáros e orquídeas e especialmente turismo silvestre e viagens ao coração da selva.
Minha decisão é o resultado de muitos anos de andança pelas selvas, compartilhando albergues e comidas nas aldeias de Achuaras (Peru), Tikunas, Tukanos, Tiriós, Cashuyanas e Ewarhoyanas (Brasil) e também a "influência hereditária". Meu pai me trasnmitiu a "doença", coisa que o agradecerei até o fim dos meus dias. Por isso creio que minha opinião tem certo valor e vale a pena ser escutada. A quem sirva que aproveite, a quem não que deixe de lado.
Fiz grande parte de minhas viagens e estadias na selva com César Miranda, professor emérito da Universidade Nacional de Córdoba e meu melhor amigo. Em 1994, tivemos a idéia de escrever um artigo sobre o tema: "Os índios e a natureza: uma harmonia duvidosa", que apareceu em duas edições consecutivas no jornal Punto Critíco de Buenos Aires. Por preguiça de resumí-lo, vou reproduzí-lo a sequência mais ou menos na íntegra:

Os índios e a natureza: Uma harmonia duvidosa

Já há alguns anos, a população das cidades está lendo, com cada vez maior frequência, artigos referentes aos índios do Amazonas que afirmam que os índios e demais habitantes das selvas "vivem em harmonia com os animais e as plantas em plena selva" e, como é caso do artigo do jornal El País de Madrid "A incessante agonia do mundo indígena" adianta outros conceitos tais como "(...)Não desejam manter contato com a suposta civilização. Não compram automóveis. Não assistem televisão. Não seguem as imposições da moda. Não tem farmácias e não usam bancos, etc.". A verdade é outra.
A percepção que o "homem branco" tem dos índios e suas culturas está dividia em duas perspectivas bem distintas: a dos que vivem próximos dessas comunidades e a dos que vivem muito longe das selvas. Do seu lado, os índios também fazem uma clara divisão entre os "brancos" com quem mantém contatos: os que vivem próximos são "maus" e os que vivem longe são "bons".
São "maus" os colonos, os agricultores, os garimpeiros, os seringueiros e a maioria das outras tribos que habitam a região. A razão é muito simples: Todos estes competem entre si pelo território que os rodeia - acreditando que lhes pertence - ou que se o "desbravam" ou "exploram" podem reclamar sua posse ao governo. Como geralmente as diferenças de opinião se resolvem com tiros a maioria das vezes os mais fracos acabam perdendo a disputa e, muitas vezes, a vida.
A opinião dos índios sobre as pessoas que vivem longe é baseada em sua experiência com missionários, antropólos e finalmente com turistas de todas as nacionalidades que passeiam pela Amazônia como se fosse um imenso jardim botânico e um interessante zoológico humano. Como a maioria das pessoas tem uma visão muito romântica do "índio" - em especial produto das idéias de Rosseau - sempre trazem "presentes", dão dinheiro pelas fotos que tiram, alimentos, roupas e outros tipos de esmolas.  Isso alivia suas consciências da "culpa" de serem civilizados e herdeiros dos conquistadores. Do outro lado os índios enxergam os visitantes como pessoas bondosas e cheias de boa intenção, o que torna mais fácil tirar coisas dos visitantes. Assim como nos mostra a história ambos aqui se enganam en tão subjetivas apreciações.
O índio não é nem "bom" nem "mau", assim como qualquer outro ser humano deste planeta. Assim como protegeriam indefesos filhotinhos de javali, matariam a todos os homens da tribo vizinha da maneira mais eficiente possível - não se dão "cavalheirismos". No entanto, as mulheres e os filhos seriam adotados como nova parte da família.
Outra teoria linda e poética mantida pelas pessoas é a que sustenta que os povos primitivos (principalmente os índios do Amazonas), "não eram depredadores do meio-ambiente" e que viviam em perfeita harmonia com a natureza. Esse ponto de vista foi exposto pelo biológo brasileiro José Lutzenberger (ex-secretário do meio-ambiente) em seu livro "A Avalanche Humana" que diz "(...) nesse estilo de vida, vivendo da caça e da coleta, o homem se encontra perfeitamente integrado ao seu meio-ambiente natural; não tem os meios nem, o mais importante, o desejo de destruir o mundo natural do qual simplesmente se considera parte (...) este estilo de vida é perfeitamente sustentável e já mostrou a sua longevidade. Não há explosão demográfica nem destruição do ambiente."
Obviamente, Lutzenberger não menciona que uma "sociedade de caça e coleta" não pode sustentar uma população mundial de mais de 6 bilhões de habitantes (pela quantidade de frutos silvestres e animais por metros quadrados e que deve ter alguma relação com a quantidade populacional).
Então, veja bem, será que Lutzenberger propõe matar os 5,5 bilhões de pessoas "restantes" no mundo? ou, outra pergunta inquietante, que organização irá decidir que irá viver "caçando e coletando" e que irá morrer? O GreenPeace?

Os donos do Paraíso

Para qualquer habitante das cidades o "Paraíso Selvagem" é o mais parecido ao "Inferno Verde" e assim foi catalogado durante muitos anos até que alguém achou que era necessário mudar essa visão da realidade. Isso era necessário porque ninguém se importa com o desaparecimento de infernos e, mais importante, ninguém contribui com nenhum dinheiro para salvar algum inferno. Também é necessário esclarecer que quando escrevemos esse artigo, havíamos passado largos períodos na selva, convivendo e aprendendo a amar seus habitantes - sejam índios, mestiços ou brancos - passáros, animais ou peixes. Que sentimos uma real e incurável paixão por tudo aquilo que se relaciona a selva do Amazonas mas, sobre tudo, sentimos uma louca paixão pela verdade. Nosso desejo é compartilhar com as pessoas - que pouco sabe e muito deseja conhecer - alguma coisa de nossa pouca ou muita experiência nestes assuntos. Exatamente por isso, nos preocupa o assunto do Paraíso e a harmonia que dizem que existe entre os índios e a natureza.
Se diz que uma coisa existe em harmonia com outra quando elas estão em proporção e correspondência, ou seja, quando ambas as coisas existem, se completam e não interferem entre si. A ciência nos mostra que isso não acontece, em absoluto, para índios e natureza - se servir de consolo nunca aconteceu para a espécie humana em nenhum período histórico - A realidade é outra.
São numerosos os trabalhos de antropologia científica que demonstram que os índios vivam em menos harmonia com a natureza que os homens do século XX. De acordo com as publicações de Smithsonian Institution Press, quando Colombo chegou a América encontrou um "reino natural primitivo", onde os nativos eram "trasnparentes nas paisagens".  Isso não é nada mais que uma história da carochinha, postulado que as pesquisas científicas comprovam que quando da chegada de Colombo as terras estavam habitadas por um número enorme de nativos e o que parecia ser terra silvestre não era mais primitivo que um parque de diversões em um sábado à tarde.
De acordo com as investigações de William Denevan, da Universidade de Wiscosin, na ilha espanhola onde Colombo pôs os pés pela primeira vez, viviam mais de um milhão de índios e as estimativas para o continente americano estava em um bilhão de habitantes. Alimentar tantas bocas requeria mais do que simplesmente "caça e pesca". 'Grande parte das selvas estavam arrasadas pelas agriculturas indígenas' diz Denevan 'Atualmente sobreviveram milhares de cultivos. Essa evidência mostra que a agricultura era substancial e permanente'.
Como as tecnologias agrícolas usadas pelos índios (desconheciam o ferro, os incas e maias fundiam apenas o ouro, cobre e estanho) os rendimentos eram baixíssimos e as extensões semeadas eram desmedidas para poder alimentar tanta população. Quando a população aumentou até níveis que as tecnologias indígenas não podiam alimentar populações inteiras foram extintas.
Para demonstrar as facilidades que as coisas interatuam: Os ecologistas gostam de dizer que se uma borboleta bate asas na baía de Sidney isso provoca efeitos de furacões no Caribe. A menos que essa afirmação seja meramente poética (e, na prática, é) não podemos desconsiderar o impacto que 1 bilhão de pessoas deve ter tido sobre o ambiente em que viviam.
Dessa forma é mais fácil acreditar nas narrações de Frei Bartolomeu de las Casas, o cronista da Conquista espanhola, quando diz: 'Tudo que foi descoberto até o ano 1549 está cheio de gente, como um enxame de abelhas, de tal maneira que parece que Deus colocou toda, ou a maior parte, da raça humana nessas terras.' Um verdadeiro paraíso, sem dúvida. Se é que Nova York, Cidade do México ou Tókio é a idéia que você faz do paraíso.
Em um artigo da revista Discover, o escritor Jaren Diamond diz: 'O homem jamais viveu em paz com a natureza. Nossos antepassados não eram menos homens do que - Eram apenas menos poderosos.' Eles extinguiram muito mais espécies de plantas e animais que o homem do século XX. Por que se insiste em apresentar os povos antigos sob uma luz romântica que pretende absolvê-los de toda a culpa ecológica?
O diário El País diz que 'Encurralados pela cultura dominante e retirados de seus territórios por ambições geralmente sem escrúpulos os indígenas do mundo continuam marchando pelo caminho que os leva ao abismo da extinção. Mas ainda continuam sendo livres à sua maneira: São os últimos homens em harmonia com a natureza'.

Já vimos que duas coisas estão em harmonia quando ambas se complementam e não interferem entre si. O certo é que a natureza está interferindo com a Humanidade desde o momento em que a mesma apareceu sob a atmosfera. A natureza submete a humanidade (principalmente os índios e demais povos primitivos) a um ataque constante, brutal e sem piedade desde o momento que esta apareceu sob a Terra e os índios conseguiram sobreviver de modo muito precário a este ataque incessante e atroz.
A população urbana constitui 80% da população mundial e considera como natural uma infinita quantidade de coisas que para os índios são simplesmente "mágicas" e maravilhosas. A visão que um índio Jívaro tem da civilização é que as pessoas da cidade obtém água tocando um objetos metálico que sai das paredes. Para esquentar sua comida basta acender magicamente seu fogão na cozinha e não precisa caçar sua comida, só ir a um local chamado supermercado. A luz que lhes ilumina provém de artefatos pendentes no teto. Para curar-se de uma doença viajam para um local onde há outras pessoas que para curar no dançam nem agitam penas ou caveira, nem invocam o espírito do jaguar ou expelem fumos alucinógenos sobre os pacientes.
Quando os homens desejam vestir-se, em lugar de caçar 30 tucanos e 15 papagaios para fabricar uma 'tawaspa' simplesmente põe uma tira de seda ao redor do pescoço e um pouco de álcool perfumado nas axilas. As pessoas da cidade são curiosas, é verdade.
Os jíbaros e demais donos do paraíso tem outro tipo de harmonia muito diferente com a natureza. O jíbaro jamais bebe agua - bebe apenas o 'nijiamanchi', a seiva da mandioca previamente mastigada pelas mulheres e depois cuspida e fermentada por um ou dois dias. Mas o resto dos índios (amazônicos ou não) devem (ou mandar suas mulheres) viajar muitas vezes al dia até algum rio ou lagoa - usualmente apenas uma poça de água barrosa, como no caso dos Tobas e Matacos - para beber água ou pegar um pouco para cozinhar. Quase sempre estão bebendo elevadas concentrações de amebas histolíticas e verdadeiras culturas inteiras de bactérias e parasitas de todo tipo. Como andam descalços nos solos úmidos próximos aos rios contraem espantosas vezes 'esquitosomiasis' e 'anquilostomiasis'. A malária e o paludismo são uma tormenta terrível apenas comparada com a febre amarela para os habitantes do "Paraíso". Os mosquitos também encarregam de transmitir-lhes a 'leishmaniasis', a cegueira do rio e outras infecções, os carrapatos, morcegos e outros encarregam de chupar-lhes o sangue, enquanto as enormes cobras como a "surucucú", as piranhas e as onças fazem um eficiente controle da população nativa. Se a isso somamos a baixa fertilidade do solo, a mudança nômade em busca de melhores solos, os males que afetam o cultivo e desesperam as mulheres - encarregadas de arar a terra, cozinhar, manter o fogo aceso 24 horas por dia, cuidar das crianças - e as ameças das tribos inimigas. Viver no "Paraíso" da maneira como fazem os índios devem ter algum atrativo que ainda não conseguimos descobrir.
E para os índios, dessa perspectiva, também não parece maravilhosos viver no "Paraíso" visto que estão constantemente conseguir todas coisas maravilhosas que a "perversa" civilização de brancos colocam a sua disposição... claro que é necessário pagar primeiro por estas coisas. E aqui está a origem de todos os problemas e desventuras das populações indígenas da América. O problema é imenso, complexo e totalmente impossível de colocar em palavras de um artigo. Apenas podemos mencioná-lo. Também não se pode afirmar que os índios recusam a civilização completa ou que a aceitam de maneira total e irrestrita. Os índios Motilones da Colômbia não desejam ter contato com a civilização, outros como os jíbaros pegam dos "brancos" o que lhes convém e descartam aquilo que não lhes convém, assim como adotamos alguns costumes franceses e não alguns costumes búlgaros.

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